O mito do “virtual” e da “virtualidade”

http://dilbert.com/strips/comic/2012-01-24/Com o desenvolvimento das comunicações computadorizadas em rede, se espalharam pelo globo os termos “virtual” e “virtualidade“. Neste artigo, procuro apresentar informações e argumentos que desmentem — ou tornam desnecessárias — algumas concepções atualmente usadas para o conceito de “virtualidade“. Aqui, penso no termo “virtual” e suas implicações à luz da Semiótica peirceana, que estuda o relacionamento dos fenômenos do universo.

Virtual é o que não existe?

Há muitas concepções de virtual:

Algumas das mais comuns são estas:

  • Virtual é algo que é apenas potencial ainda não realizado (a definição histórica).
  • Virtual é algo que não é físico, apenas conceitual.
  • Virtual é algo que não é real.
  • Virtual é a simulação de algo.

Tudo é virtual?

Um dos mais conhecidos autores a tratar do tema é o francês Pierre Lévy. Em seu livro “O que é virtual?”, ele define:

“o virtual não se opõe ao real, mas sim ao atual. Contrariamente ao possível, estático e já constituído, o virtual é como o complexo problemático, o nó de tendências ou de forças que acompanha uma situação, um acontecimento, um objeto ou uma entidade qualquer, e que chama um processo de resolução: a atualização.” (LÉVY, 1996, p.16)

É uma definição filosófica. Como filosofia, é uma especulação, não ciência (Eu não conheço Filosofia, mas todos os meus alunos ou colegas que estudam a matéria dizem “Pff…” e desconversam quando toco no nome de Lévy).

Na tentativa de explicar melhor o que é “virtual“, Lévy descreve a situação de uma empresa com departamentos longe da matriz. O que também não ajuda em nada na definição. Que diferença esta empresa com teletrabalhadores teria em relação a uma empresa com salas em diversos andares de um prédio? Sem se preocupar com um termo mal definido, Lévy vai adiante:

“A virtualização pode ser definida como o movimento inverso da atualização. Consiste em uma passagem do atual ao virtual, em uma ‘elevação à potência’ da entidade considerada. A virtualização não é uma desrealização (a transformação de uma realidade num conjunto de possíveis), mas uma mutação de identidade, um deslocamento do centro de gravidade ontológico do objeto considerado: em vez de se definir principalmente por sua atualidade (‘uma solução’), a entidade passa a encontrar sua consistência essencial num corpo problemático” (LÉVY, 1996, p.17).

Alguém entendeu isto? Poderia dar um exemplo na vida real? Poderia dar um exemplo da utilidade deste conceito? Por favor, então deixe as explicações no espaço de comentários abaixo, porque, para mim, isto é incompreensível e inaplicável em ciências.

Virtualmente tudo

A partir daí, sem que o conceito de “virtual” tenha sido esclarecido, Lévy usa o termo para criar mais especulação filosófica: passa a falar de “virtualização” aplicada a, praticamente, todos os aspectos da vida humana: “Três processos de virtualização fizeram emergir a espécie humana: o desenvolvimento das linguagens, a multiplicação das técnicas e a complexificação das instituições” (LÉVY, 1996, p. 70). E assim por diante. Ao final do livro, fica-se imaginando que tudo é virtual.

Acho surpreendente que conceitos tão mal explicados estejam tão disseminados no ambiente acadêmico, e que Lévy seja citado como grande autoridade no assunto.
Talvez os inglêses tenham razão quando zombam da “dissertação francesa”.

Na impossibilidade de aplicar em ciências (Comunicação, Informação e Pedagogia, neste caso) conceitos filosóficos mal explicados, vou me ater apenas ao conceitos de virtual usado pelo senso comum.

Virtualmente hype

Em Pedagogia, é freqüente o uso de “virtual” na designação de sistema de colaboração em rede. Como em “ambientes virtuais de aprendizagem”, por exemplo. Em informática, é muito usado para designar sistemas de animação tridimensional em tempo real: “realidade virtual”. “Virtual” também é um termo usado largamente para designar qualquer relacionamento mediado por redes de computador. A midia de informática, principalmente, ajuda a popularizar a “virtualidade”, porque é uma palavra que sempre chama atenção, está sempre ligada a novas tecnologias e ao hype tecnológico.

Realidade virtual

O termo realidade virtual se popularizou a partir de 1989, cunhado por Jaron Lanier. Segundo ele próprio:

“Eu originalmente me aproximei do termo como uma reação ou uma resposta a um termo que já estava por aí. Tinha um cara chamado Ivan Sutherland — ele é o pai da computação gráfica — e ele usava o termo ‘mundos virtuais’, o qual na verdade remete a uma filósofa das artes chamada Suzanne Langer. Ela falava sobre mundos virtuais nos anos 1950, antes que houvesse tecnologia para imaginá-los; ela estava usando o termo como uma metáfora”. (BEHR, 2002)

Chegamos, então à fonte do “virtual” usado pelos informatas. Descobrimos, também, que o uso do termo por Langer é uma metáfora.

Virtual filosofia?

Suzanne Langer, uma filósofa da música, descreveu estas concepções de virtual no livro Sentimento e Forma, publicado originalmente nos anos 1950 (LANGER, 1980). Para ela, olhando um quadro figurativo criaríamos em nossas mentes um “mundo virtual”. Um quadro de paisagem criaria aquela paisagem em nossa mente.

Este tipo de operação mental (representações em nossa mente causadas por fenômenos externos) foi explicado por Charles Sanders Peirce há mais de cem anos, ao definir a Semiótica como a ciência dos signos. Para ele, signo é algo que está no lugar de outra coisa, representando algo para alguém (PEIRCE, 1977, p. 46). Um quadro de paisagem estaria no lugar da paisagem real, por exemplo. Representaria a paisagem, seria um signo icônico dela.

Mas Peirce pensava Semiótica como o estudo da significação não apenas entre seres inteligentes. Ele falava na representação “para alguém” porque não era compreendido quando falava em representação para “alguma coisa”. Os signos não representam, necessariamente, para um ser humano, mas também para um outro fenômeno qualquer. Hoje, por exemplo, podemos ver como semiose um elétron interagindo e significando algo para um próton e vice-versa, formando uma nova significação: um átomo de hidrogênio; átomos de hidrogênio interagindo com átomos de oxigênio formando nova significação, a água. E assim por diante, no processo que Peirce chamou de cadeia semiótica, uma rede infinita de significações.

Virtualidade é um fenômeno

Eu uso a Semiótica como ferramenta para entender como como o universo se estrutura, desde as menores subpartículas da matéria até os gigantescos fenômenos galácticos, passando pelo cérebro humano e demais criaturas vivas. E vejo o universo, conforme a Semiótica peirceana, como uma complexa relação de fenômenos significando coisas para outros fenômenos (MEIRA, 2003).

Pelo conceito de semiose, a concepção metafórica de “virtualidade” de Langer, de que o cérebro forma “um mundo virtual”, é apenas mais um nível da semiose. Não haveria, então, um “outro mundo” dentro de nossas cabeças, mas apenas mais um nível de significação fazendo parte da cadeia semiótica.

Além disso, concepção mental não é algo irreal, “virtual“, porque nossos pensamentos são coisas reais e materiais: pelo que se sabe do cérebro, hoje, os pensamentos são definidos por ligações sinápticas entre células nervosas. Nossas concepções mentais, nossas idéias, nossos sentimentos, nossos conceitos, nossa imaginação, tudo isto são coisas físicas, interações entre células nervosas mediadas por neurotransmissores e energia elétrica. Pensamentos são esmagadoramente físicos. Não são exatamente coisas, mas interações entre coisas aparentemente físicas, que por sua vez são interações entre outras coisa, que são interações entre outras coisas, infinitamente. Tudo no universo é resultado de interações entre fenômenos, num complexo “joguinho de armar”.

Ambientes virtuais

Por que sistemas de ensino por computadores em redes seriam “virtuais”? Em oposição ao ensino presencial? Vamos analisar, então uma interação presencial.

Quando pessoas se encontram ao vivo, elas só sabem da presença da outra pelos cinco sentidos do ser humano.

  • Visão
    Vemos outra pessoa graça à luz. Então somos mediados pela luz. Não vemos a outra pessoa, vemos a luz que refletiu nela e chegou às nossas retinas.
  • Audição
    Não ouvimos a pessoa: ouvimos as vibrações no ar feitas pela outra pessoa.
  • Olfato, gustação, tato
    Podemos sentir o cheiro da pessoa. Mas o que sentimos são informações nervosas desencadeadas por substâncias exaladas pela outra pessoa e que chegam ao nosso sistema olfativo. Da mesma forma, o tato e a gustação.

Estes três últimos são sentidos que nos informam sobre outras pessoas, mas não são muito usados na educação. Portanto, não me interessam neste momento. Vou me ater à visão e à audição.

O que não é virtual?

Uma interação “ao vivo”, então, é mediada pela luz e pelo ar. Nas interações por computador, estes dois meios são traduzidos mais algumas vezes: a luz e o som são transformados em impulsos elétricos, depois digitalizados, transformados em orientações magnéticas (nos disco de computador), em energia elétrica (nos circuitos eletrônicos), em luz (nas fibras ópticas), em ondas eletromagnéticas, etc, e decodificados novamente na outra ponta da comunicação. O que aconteceu, na verdade, foi traduzir algumas vezes a informação, mediar mais algumas vezes uma mediação que já existia. Toda interação é mediada, não importa sua natureza. Isto acontece com pessoas ou com qualquer outra coisa no universo.

A rigor, não existe diferença entre uma interação ao vivo e uma interação por computador, a não ser na forma de maior resolução e qualidade da mediação. Uma interação ao vivo tem maior resolução, maior quantidade de informações que uma mediação por computador. Mas também é mediada. Sendo ambas interações mediadas e tendo ambas a mesma natureza, como todas as mediações, não faz sentido diferenciá-las, a não ser pelo nome da mídia: interações ao vivo, interações online, por exemplo.

Considerações finais

Em Pedagogia, Informática e Comunicação, os termos “virtual” e “virtualidade” são definidos imprecisamente ou impropriamente e não explicam a natureza dos fenômenos em que são aplicados.

Como significado oposto ao real, não devem ser usados porque todas as interações que existem no universo são reais, inclusive a imaginação. Ou, visto pelo ângulo da Semiótica, todos os fenômenos do universo são significações.

Como significado de simulação ou de interações por redes de computadores, “virtual” não deve ser usado porque leva à confusão com o uso histórico do termo. Existem opções mais precisas: ambiente online ou ambiente simulado são bem mais explicativos que “ambiente virtual”. Realidade simulada, melhor que “realidade virtual”. Como metáfora de sala de aula presencial, é desnecessário, pois a função da metáfora seria explicar algo complicado, e, hoje, praticamente todo mundo entende o que é comunicação via internet sem necessidade de metáfora.

Bibliografia

  1. BEHR, Mary E. Who is Jaron Lanier? INTERVIEW: Jaron Lanier, “Virtual Reality” Inventor. ExtremeTech, 12 fev. 2002. Site web em <http://www.extremetech.com/ article2/ 0,1558,100970,00.asp>. Lido em 19 jan. 2005.
  2. CHAVES, Eduardo O. C. A Virtualização da Realidade. Documento HTML disponível em: http://www.edutec.net/Textos/Self/COMPUT/virtual.htm. Acesso em: 12 jan. 2006.
  3. LANGER, Suzanne K. Sentimento e forma. 1. ed. São Paulo: Perspectiva, 1980. 439 p.
  4. LÉVY, Pierre. O que é o virtual? São Paulo: Ed. 34, 1996.
  5. PEIRCE, Charles Sanders, Semiótica, S. Paulo: Editora Perspectiva, 1977.
  6. ROCHA, José Antonio Meira da. Espaço e tempo no jornalismo online. Dissertação de mestrado em Comunicação na Unisinos. 2003. Documento HTML na Web em <http://meiradarocha.jor.br/news/wp-content/uploads/2007/11/dissert-2007-04-18b.pdf>. Acesso em 19 jan. 2005.
  7. WIKIPEDIA.
  8. GOOGLE.
  9. WEBOPEDIA.

Outras leituras

  1. SKAGESTAD, Peter. Peirce, Virtuality, and Semiotic. Página HTML em: <http://www.bu.edu/wcp/Papers/Cogn/CognSkag.htm>. Acesso em: 19 jan. 2005. (N. do A.: a leitura deste paper talvez mude tudo o que está escrito acima, ou talvez apenas reforce. Tenho que ler com mais calma).
  2. http://www.directionsmag.com/articles/is-it-time-to-remove-the-term-virtual-from-our-mapping-vocabularies/186472

  • É interessante notar que Lévy, que tanto fala em difusão do conhecimento e inteligência coletiva, não tenha colocado nenhum dos seus livros na internet e é a favor das anacrônicas leis de direito de cópia arquitetadas pelo poder econômico. Tenho dúvidas se ele realmente entende do que está acontecendo no mundo das informações digitais em rede. Em um de seus livros, ele passa o tempo todo falando em informação “digital (numérica)”. Sempre que aparece a palavra “digital”, segue a explicação de que é numérica. Ora, computadores digitais não trabalham com informações numéricas, apenas com informações de lógica binária. Eventualmente, a informação binária representa números, mas quase sempre, não. Essa informação lógica binária pode representar instruções de máquina (o mais comum), cores, sons, cheiros. Portanto, falar em informações numéricas é demonstrar uma incompreensão fundamental das mídias digitais.

About José Antonio Meira da Rocha

Jornalista, professor das áreas de Editoração e de Mídias Digitais na Universidade Federal de Santa Maria, campus cidade de Frederico Westphalen, Rio Grande do Sul, Brasil. Doutor em Design pelo Programa de Pós-Graduação em Design (PGDesign)/Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, Brasil, 2023. Mestre em Mídias pela UNISINOS, São Leopoldo, RS, Brasil, 2003. Especialista em Informática na Educação, Unisinos, 1976.