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Que estratégia político-terapêutica pára um governo deliroide?

Rita Almeida, 9 de março de 2019

Psicóloga Rita Almeida: não delirantes, mas deliroides.

Não acho prudente, nem ético, usar a psicanálise para diagnosticar ou analisar pessoas fora do meu consultório, mas é totalmente possível ou aceitável utilizá-la para analisar conjunturas político-sociais. Mas, nem é preciso entender de psicologia para perceber que o Bolsonarismo tem um componente deliroide bastante forte. As tão faladas “Fake News” exemplificam muito bem o que eu chamo aqui de deliroide: verdades construídas a partir de fragmentos ou de indícios de realidade e tornadas verdades universais.

Eu trabalho no campo da saúde mental há mais de 20 anos, e se tem uma coisa que aprendi com esse trabalho é que o delírio não pode ser desmontado por uma simples confrontação com a realidade ou com racionalidade. Se o sujeito, em franco delírio, chega até você afirmando que tem um chip instalado na cabeça e através do qual se comunica com extraterrestres, não há absolutamente nada que se diga que mudará sua perspectiva de realidade. Nem que eu lhe mostre uma ressonância magnética do próprio crânio, ou que seja possível abrir sua cabeça para mostrar que não há nada lá, ele não se demoverá de sua verdade. Isso pelo simples fato de que aceitar desmontar tal delírio, seria desmontar a si próprio, já que, naquele momento, por uma fragilidade simbólica, o sujeito encontra-se totalmente assentado sobre aquela verdade. Se ela cair, ele cai junto. Freud dizia que os psicóticos amam o próprio delírio como a si mesmos. Resumindo, é isso.

“Você não pode convencer um terraplanista e isso deveria te preocupar”

Semana passada li um artigo do Javier Salas no El País, sobre o terraplanismo intitulado: “Você não pode convencer um terraplanista e isso deveria te preocupar”. Os terraplanistas, afirma Salas, simplesmente acreditam que a Terra é plana, e qualquer dado que possa prová-los do contrário é simplesmente ignorado ou considerado manipulação de conspiradores. Obviamente que não é possível dizer que todos os terraplanistas são psicóticos ou doentes mentais, mas certamente, podemos falar de um empobrecimento ou fragilidade simbólicas, o que favorece o discurso que chamei de deliroide, ainda que ele não seja rigorosamente delirante.

Voltamos ao Bolsonarismo, fortemente fundamentado num discurso deliroide, reforçado pela sua reprodução maciça nas redes sociais, especialmente no whatsapp. Se o clã Bolsonaro está se aproveitando do discurso deliroide ou se acredita mesmo nele, eu não saberia dizer. O fato é que ele tem sabido utilizá-lo muito bem, desde a campanha eleitoral, e também tem sido bastante competente em agregar a si personagens igualmente deliroides (nem é necessário citá-los um a um). Diante disso, não há debate político possível. Não há racionalidade que possa confrontar os argumentos do Bolsoplanismo. Então, o que fazer? Que estratégias utilizaremos?

O que posso dizer a partir do que estudei e pratiquei todos esses anos é que, se não é possível desmontar um delírio, é possível desconstruí-lo pouco a pouco, parte por parte. Fazer pequenos furos, abalar algumas verdades, duvidar, perguntar, são algumas das estratégias que utilizamos para ir minando a certeza do sujeito delirante, fazendo-o enxergar outras possibilidades. E é muito importante que ele encontre outras possibilidades, caso contrário, voltará para sua certeza delirante, que ao menos lhe assegura um lugar.

Comecei a escrever este texto, com a intenção de defender a estratégia do ator José de Abreu, ao criar seu personagem presidente. Obviamente que ele não partiu de nada disso que eu falei para se autodeclarar presidente, mas acredito que tenha pensado algo do tipo: “diante de tanto absurdo, o remédio só pode ser mais absurdo”, e suponho que ele tenha razão. Não há argumento racional que possa arredar o Bolsoplanismo do seu lugar. O debate, o noticiário, a justiça ou a ciência (números, estudos e estatísticas), não fazem o menor efeito. Portanto, é necessário provocar outros afetos nessas pessoas, afetos que possam ir descontruindo suas certezas. Obviamente que não estou me referindo ao clã Bolsonaro e sua trupe maluca, e haverá também um núcleo duro que irá defender o Bolsoplanismo até a morte, mas é possível reduzir bastante o contingente de militantes deliroides, até que fiquem relativamente inofensivos.

Voltando ao teatro do absurdo estrelado por José de Abreu – e é perfeito que isso esteja sendo feito por um ator – acredito que ele esteja colocando em prática uma coisa que fazemos nos nossos serviços de saúde mental e que funciona muito. Como usamos muitas práticas coletivas (grupos, oficinas e outras) os pacientes começam a ter que lidar com os delírios uns dos outros e, desse modo, começam a enxergar o seu próprio delírio. Ao duvidarem do delírio do outro, passam a duvidar do seu também. Ao rirem do delírio do outro, começam a rir do seu também. Ao se envergonharem do delírio do outro, começam a se envergonhar do seu também. E todos esses afetos, se não derrubam completamente os delírios, os deixam menos rígidos, emburrecedores e limitadores.

Tenho considerado que a performance de José de Abreu, já abraçada por vários outros políticos aliados, pode funcionar como uma grande oficina terapêutica a céu aberto. E ela tem ficado ainda melhor por contar com a participação do próprio Bolsonaro, que se dispõe a sair de sua posição de Presidente diplomado, para “bater boca” com um presidente fake. Apenas esse fato já nos dá a medida do tamanho do surreal que nos (des)governa, e do quanto a oficina do presidente fake está funcionando. Sugiro que ela não pare, e se amplie.

Por hora, o que podemos fazer para desbancar o Bolsonarismo e seu mito deliroide é isso mesmo: miná-lo. Para tal, precisaremos despertar o maior número de pessoas possível. Acho uma excelente estratégia fazer isso por meio do humor e do teatro do absurdo. O Brasil precisa enxergar sua própria loucura.

Contra um fake Presidente, nada melhor que um fake concorrente.

José de Abreu pra presidente do Brasil.

E já me ofereço para o Ministério do Alienismo.

Rita Almeida

*O editor sabe que caiu o acento diferencial de para, mas preferiu acentuar para tornar mais clara a frase.

José Antonio Meira da Rocha

Jornalista, professor das áreas de Editoração e de Mídias Digitais na Universidade Federal de Santa Maria, campus cidade de Frederico Westphalen, Rio Grande do Sul, Brasil. Doutor em Design pelo Programa de Pós-Graduação em Design (PGDesign)/Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, Brasil, 2023. Mestre em Mídias pela UNISINOS, São Leopoldo, RS, Brasil, 2003. Especialista em Informática na Educação, Unisinos, 1976.

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