No calor da campanha presidencial de Dilma, em 2010, o jornalista Alec Duarte, sub-editor de política do jornal Folha de São Paulo online, postou o seguinte comentário na lista de discussão sobre Jornalismo Online da Universidade do Texas:
Caros, está em curso um absurdo: nesta quinta, o sindicato dos jornalistas do Estado de São Paulo abre seu auditório para um ato de partidos políticos, sindicatos e ONGs contra a imprensa. Você leu bem, é isso mesmo.
Tenho entendido que o evento joga uma pá de cal sobre o pouco de representatividade que essa entidade, à qual sou filiado, ainda exercia sobre a categoria. É o atestado de óbito do sindicato.
Há algo a fazer além de se indignar?
Mais informações aqui
http://is.gd/flMrW
É possível que tal matéria jornalística tenha sido redigida ou editada pelo próprio Alec, um jornalista chapa-vermelha — trabalha para a imprensa comercial. Chapa-vermelha por analogia ao jornalista “chapa-branca”, que costuma apoiar os governos. Em certa época, as viaturas de empresas privadas tinham placas vermelhas.
Imediatamente eu reagi, na lista:
Não é “contra a imprensa”. É contra as manipulações feitas por alguns órgãos, como tentar fazer escândalo com matérias tendo como única fonte um estelionatário ladrão de carga condenado por ameaçar de morte, que queria a aprovação do BNDE para um projeto de 9 bilhões de reais (BI-lhões, não mi-lhões)… [o link eu coloquei ao escrever este artigo].
Leopoldo Godoy, outro jornalista chapa-vermelha, comentarista de tecnologia do programa Conta Corrente, do canal de televisão a cabo Globo News, referendou o ataque:
Ou seja, é contra a imprensa.
Lamentei:
Se for esta sua definição de imprensa, então é…
Marion Strecker, chapa-vermelha da Folha de São Paulo, assinou embaixo do ataque:
No auge de uma campanha eleitoral, o sindicato dos jornalistas abrigar manifestação contra órgãos de imprensa que investigam os possíveis podres da República, cheira realmente mal.
Indignei-me:
Desculpe-me, Marion, mas o que não dá pra sentir o cheiro aqui é de “investigação”.
Se tivessem investigado, não teriam dado página inteira e tratamento de “empresário” a um vigarista.
Se entra um sujeito na redação e diz que tem um projeto de 9 BILHÕES de reais, você tem duas opções:
- Encaminha-o ao dono do veículo e à editoria de Economia, porque é o Eike Batista, ou
- Encaminha-o à porta da rua, porque é um picareta maluco desses que aparecem todo o dia em redações.
NOVE BILHÕES! BI! Metade do orçamento do MEC em 2003… dois meses de orçamento do MEC de 2011…
Falando em cheiro, cadê o faro jornalístico?
E este foi apenas UM dos incontáveis fatos que estão sujando a expressão “jornalismo investigativo”…
Marion retrucou:
Não é só de depoimento de santinhos que vive a imprensa nem mesmo a Justiça. Nem aqui nem em lugar nenhum.
Quer um exemplo no campo da justiça? Delação premiada. Só porque é condenado não pode abrir o bico contra outros criminosos?
Partidarismo
Alec Duarte corre em auxílio da colega chapa-vermelha:
Nosso amigo se esquece ainda de que CAIU uma ministra justamente por conta do conluio com bandidos [referia-se a Erenice Guerra, depois inocentada] . Mas, claro, a culpa é da imprensa.
No que é acompanhado do Pedro Doria, mais outro chapa-vermelha do jornal Estado de São Paulo, revelando o partido que tomou:
Vc pode ficar com o Nassif, o Azenha, o Rodrigo…
De minha parte, sigo com Ferreira Goulart, Helio Bicudo, José Arthur Gianotti…
Imprensa serve para isso mesmo: incomodar governo. Fuçar, fuçar, fuçar. Publicar o que descobre. Incomodar o poder constituído, não importa quão popular. E governante reclama. É o jogo.
(Se a ministra era inocente, foi demitida por quê?)
Um jornalista como ele deveria saber o porquê: pela opinião publicada (não opinião pública). E deixar um juiz condenar a pessoa, antes de chamá-la de culpada. Dando a entender que os tubarões da mídia também jogam no poder, retruquei:
… ou OS PODERES, já que não existe só uma fonte de poder…
Doria concordou:
Perfeitamente: incomodar os poderes. Todos eles.
É o nosso papel.
Walter Lima foi mais específico nas críticas:
Desculpe a minha total ignorância. Mas a grande mídia jornalística é produzida por quem? Hummm …. jornalistas? Repórter, repórter-fotográfico, editor, repórter-cinematográfico etc pertencem à engrenagem fundamental da produção do conteúdo jornalístico. Hummm, se o Sindicato dos Jornalistas afirma que há “denúncias sem provas”, portanto, existe para a entidade o tal do jornalismo marrom (como se dizia antigamente). Mas produzido por quem? A lógica mostra que é por jornalistas.
Sabemos que não existem somente “Santos” nas redações, na academia e nos encontros de padres franciscanos, mas acredito que o sindicato com essa atitude coloca todos os jornalistas que trabalham na grande mídia dentro do mesmo saco. Conheço muita gente que trabalhou comigo em redação, alunos meus que agora estão no mercado (apesar de não colocar a mão no fogo por alguns) e colegas que convivo, além de acompanhar a trajetória de outros, e percebo que existe muita gente decente, dedicada e trabalhando em prol de um pais mais justo e igualitário sem ter o viés ideológico, partidário ou comercial (sim, isso é possível !!!).
Não deixar claro que a manifestação é contra os “donos” dos veículos e dar o “nome aos bois” fornece a percepção que todos (donos e jornalistas) estão com o mesmo objetivo: serem “golpistas” . Com esse ponto de vista, o sindicato está contra uma parte da classe que deveria defender (jornalistas que trabalham nas grandes redações = trabalhadores). Por outro lado, a manifestação, dos grupos organizados da sociedade civil mencionados no aviso do sindicato, é legitima em uma democracia e deve ser noticiada.
Aproveito para dizer que ainda é uma atraso os grupos de mídia brasileiros não se posicionarem através dos seus editoriais por um candidato A ou B. Todos nós sabemos que eles têm, sim, as suas preferências e explicitar para a sociedade é muito bom para a democracia.
walter
(assino na figura de Jornalista, com MTB, carteira assinada e tudo mais que está sendo questionado na atual sociedade)
Pedro Doria responde:
Walter, todos —
A imprensa erra. Somos, todos, os primeiros a admiti-lo. Todos aqui, tenho certeza, já erramos profissionalmente.
Mas não é sobre erros que o protesto no Sindicato trata. Tampouco é sobre a suposta má fé de um ou de outro. Há um movimento em curso que diz que a grande imprensa faz parte do jogo político. Que opera feito um partido.
Eu estou envolvido, pessoalmente, na cobertura de eleições do Estado. O Alec, aqui, está pessoalmente envolvido na cobertura de eleições da Folha. Certamente há outros dentre nós. Mas não tomo apenas pessoalmente a afronta. Porque ser jornalista é, antes de tudo, um estado de espírito, não a redação na qual você trabalha. Seja num grande jornal, seja num blog, seja na sala de aula ou ralando em frilas, jornalista de verdade é tudo igual. Quando leio na Folha, ou na Veja, ou seja lá onde, uma baita manchete com dados, testemunhos, denúncias, minha reação instintiva é: putz, filha da mãe, eu queria ter dado essa. Tenho certeza de que, quando o furo é nosso, noutras redações a reação é a mesma. É isso que nos faz jornalistas.
Esta deveria ser a definição, aquilo que dita no mais íntimo, o que é fazer o que fazemos.
Se o governante diz uma coisa, você desconfia. No ato. Antes de piscar os olhos vc já duvida de que seja verdade. Este ceticismo não é apenas natural. É fundamental. Se você começa a encontrar parente que não acaba mais de ministro em tudo quanto é lugar dos negócios do Estado, caramba… quando, em que momento, as regras do jornalismo mudaram a ponto de que partimos do princípio de que isto é normal? Que isto pode ser, em qualquer circunstância, minimamente aceitável? Se um candidato cresce nas pesquisas, é sua obrigação profissional, obrigação perante seu leitor, perante a democracia, aumentar o escrutínio sobre este candidato. Sobre o que ele representa. Isso não é golpe. Aliás, é justamente o contrário de golpe. A liberdade de aumentar o escrutínio em qualquer um muito próximo do poder é a definição fundamental de democracia. E é preciso muito jogo retórico, muita demagogia, para inverter uma definição tão clara.
Que os governantes respondam dizendo ‘a imprensa está inventando’ ou, pior, que se refiram a nós pelo famigerado ‘mídia’, ora pois, é do jogo.
Que jornalistas comprem este discurso não é. Que jornalistas incentivem este discurso, é pior. Que jornalistas pagos pelo governo direta ou indiretamente movam uma campanha com este argumento, é terrível. É uma ferida aberta em nossa profissão. Que o Sindicato que deveria compreender como redações funcionam, que deveria nos representar perante nossos patrões, abracem este processo não é apenas ruim, pior ou terrível. É um divisor de águas.
Deixa claro que não nos representa. Não é que não representem nós, jornalistas em grandes redações. Não. É sem aposto. Não representa a nós, jornalistas.
Mas, convenhamos: não somos nós que deixamos de fazer jornalismo. Nós continuamos seguindo os mesmos preceitos de ceticismo constante, de um desejo obstinado por entender como é constituído o poder e de revelá-lo a quem desejar a informação. Durante uma eleição, numa democracia, é só mais importante este papel. Com esta informação nas mãos, votamos todos.
Eu, pessoalmente, estou hiper mexido com este processo. É triste demais…
Paralelamente, na lista de discussão fechada da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), devia estar rolando uma discussão parecida, porque Malu Gaspar, chapa-vermelha na revista Exame, manda um texto do repórter Rubens Valente, chapa-vermelha da Folha de São Paulo, postado naquela lista:
Falta memória. Quando Millôr Fernandes dizia que imprensa é oposição, e o resto, armazém de secos e molhados, todo mundo achava o máximo. Hoje essa boutade virou um insulto. O escritor Autran Dourado, secretário de imprensa de JK, declara no recém-lançado “No Planalto, Com a Imprensa” (aliás, caríssimo, bancado pela Presidência) que a imprensa na época “agia como oposição” e qualificou de “hostil” a relação com os repórteres setoristas do Planalto. Isso há 50 anos.
Mais adiante quem não se lembra de Claudio Humberto e seu “bateu, levou”? Collor se dizia alvo de um golpe e chamou o povo às ruas para defender seu governo (qualquer semelhança entre o discurso difamatório de Lula sobre a imprensa e o “protesto” de quinta-feira é a história repetida em farsa. E as aspas no protesto vão pela insignificância do ato). Naquela época todo mundo achou que a imprensa cumpriu um papel glorioso _claro, o PT, derrotado nas urnas, havia criado um “Gabinete Paralelo” e queria de todo jeito “desgastar o governo”, como dizia abertamente na época. Golpe, conspiração? Imagina, era tudo parte do “jogo democrático” e da “luta política”. A imprensa era amiga, parceira nos planos partidários de “tomada do poder pela via democrática”. Repórteres ostentavam broches do partido. Quando a revista “Veja” dissecou as entranhas do esquema Collor, numa campanha avassaladora, também estava apenas “cumprindo seu papel democrático”. Ao lado da “IstoÉ” derrubou Collor, enquanto o PT explodia em alegria. Hoje é “criminosa”, “golpista”.
Depois a Folha (que fora invadida por fiscais da Receita e da PF) revelou a emenda da reeleição, que colocou o governo FHC em xeque e abalou as Bolsas. Mais adiante toda a imprensa derrubou um ou dois ministros com as fitas do BNDES e revelou a “bomba atômica” presidencial que precisou ser detonada no leilão das privatizações. Quem tiver curiosidade e boa-fé suficientes que pergunte a Fernando Henrique o que ele achou daquelas reportagens. Eu perguntei: até hoje sua contrariedade é evidente. Marcaram seu mandato e podem, sim, ter contribuído para o seu plano fracassado de eleger o sucessor.
Mas, nos estranhos dias que correm, quem se importa em reconstituir os fatos históricos com alguma isenção? É muito mais fácil separar o país entre “prós” e “contras” _muito embora não se saiba em relação a quê ou a quem_, num raciocínio torpe, infantil e precário.
Estavam os primeiros co-listeiros a falar não sobre mais ou menos críticas à imprensa, mas sobre o uso de um sindicato e de entidades atreladas ao governo e a um partido para constranger jornais e jornalistas no exato momento em que o governo é alvo de denúncias inúmeras e gravíssimas. É disso que se tratava. Vemos uma clara campanha de “criminalização” de jornais e jornalistas. Um blog exibiu a foto de uma jornalista coberta por uma tarja preta, com a legenda: “O jornal Tal é caso de polícia”. Outro escreveu que o local em que eu trabalho é uma “lixeira”. Eu jamais diria isso de alguma empresa, ainda que fosse um blog pago com dinheiro público para espalhar o ódio, o preconceito e a desinformação, como é o caso. São movimentos ilegais de constrangimento. Por que ilegais? Porque abrem espaço para o anonimato, que é vedado pela Constituição.
Esses auto-instalados “críticos de mídia” _uma profissão crescentemente rentável_ pretendem “explicar” à “turba ignorante” que a profissão a que me dedico há 21 anos é negativa, desonrosa, criminosa. Sendo “velha”, precisa ser imediatamente substituída, extirpada, encerrada. Jogam, assim, impunemente contra os empregos de milhares de famílias.Todo jornalista que conheço é aberto à crítica, mas atualmente são poucas as críticas com algum talento, sobre a qual podemos debater. O que existe é um movimento coordenado para tentar a desqualificação do próprio fazer jornalístico. Nos tomam por trouxas, que se acovardam com qualquer patifaria. Certamente não sabem, por absoluto amadorismo, com quantos contratempos se forma o caráter de um jornalista.
Rubens Valente, repórter
Alec Duarte cita este texto e assina embaixo dos comentários de Pedro Doria:
Depois deste belíssimo texto do Pedro Doria, o qual peço permissão para coassinar, deixo com vcs brilhante reflexão do repórter Rubens Valente, também meu colega.
Agora, aguardo a assinatura do atestado de óbito do sindicato dos jornalistas de SP, nesta quinta-feira.
Epílogo
Alguns meses depois deste mambo-jambo Jedi sobre Jornalismo, sob o qual eu também assinaria, o que aconteceu?
- O jornalista Alec Duarte posta em seu twitter uma crítica inocente sobre critérios jornalísticos internos da Folha de São Paulo, incomoda os poderosos patrões e é demitido, junto com uma colega. Seu próprio patrão o castiga por se expressar.
- O vigarista que eu citei no início do texto, única fonte da Folha de São Paulo, tratado pelo jornal como “empresário”, tem que pedir desculpas ao PT por ter mentido, depois de perder ação na Justiça…
- O jornalista investigativo Amaury Ribeiro Jr. publica o livro “A Privataria Tucana”, incomoda a poderosa imprensa envolvida com as privatizações e ela cai num constrangedor silêncio.
- Quando se manifesta, a imprensa comercial condena Amaury Jr. antes da Justiça por ter sido apenas indiciado numa suposta armação serrista. Um vigarista é mais considerado que um colega de profissão Prêmio Esso.
- A ministra Erenice Guerra, que caiu por “conluio com bandidos”, conforme Alec Duarte, é inocentada.
Então, quem é contra a liberdade de imprensa? O Sindicato dos Jornalistas de São Paulo ou os patrões do Alec Duarte? Quando os poderosos são os patrões, o papo de liberdade de imprensa não conta mais?
Por estas e por outras são necessários tanto o Conselho Federal de Jornalistas, como outras 31 profissões regulamentadas têm os seus, quanto a regulação da Comunicação, como manda a Constituição.
UMA DICA, retalhe o artigo na internet, divida em mais de uma página. Talvez um breve resumo do tópico e a opção de abrir ele inteiro. Ou mais de uma página.
ACOMPANHO sempre seu site, e devo dizer que me ajudou e ajuda muito.
Valeu a dica e o prestígio, Patrick!
Vou procurar um plugin para fazer isto.
Essa foi no fígado, Meira. Parabéns pela clareza e objetividade. Nota 10 para o Professor.
Prof, obrigado pelo texto esclarecedor/estarrecedor.