Pela abolição do emprego

O patrão precisa de você. Você não precisa do patrão.

O sistema de emprego, ou patronato, é o sistema de exploração do trabalho que substituiu a escravatura. É apenas um dos sistemas de exploração do trabalho que já existiram na história da humanidade. Por exemplo, a servidão era outro sistema. Ou a escravatura.

  • A servidão era baseada em mestres e servos.
  • A escravatura era baseada em senhores e escravizados.
  • O patronato é baseado em patrões e empregados.

A escravatura foi substituída porque, além da pressão de um grande movimento popular anti-escravidão e o medo de uma revolta, escravizados não tinham a produtividade exigida pelo capitalismo. Era mais negócio explorar imigrantes, que tinham maior produtividade e que poderiam trabalhar por uns trocados. Além de embranquecer o país, claro.

Aí, o senhor virou patrão e o escravizado virou empregado, mas continuou subalterno, subordinado ao  patrão. Como apontou o empresário e educador Ricardo Semler, um trabalhador contratado como empregado passa um quarto de sua vida num ambiente altamente autoritário, que é a empresa atual.

Os trabalhadores, em vez de se organizarem em associação de trabalhadores, se reuniram em associações de empregados: os sindicatos. A luta sindical, apesar de ter melhorado imensamente a situação dos trabalhadores, se esforça para melhorar uma das partes do sistema patronato e acaba sustentando o regime como um todo.

Assim como escravizado e senhor são partes do mesmo sistema (a escravatura) patrão e empregado são partes do mesmo sistema — o patronato. Não existiria patronato sem empregados, nem patronato sem patrões. Ambos são contrapartes do mesmo sistema. Se uma das partes se dá bem (normalmente, o patrão), o sistema todo se dá bem. Se a outra parte — o empregado — se dá bem (o que é raro), o sistema todo se dá bem. E, principalmente, o mais inaceitável: o trabalhador-empregado continua subalterno ao empresário-patrão. Sem falar na necessidade que o sistema tem de manter desempregados para baixar o preço do trabalho.

Desemprego, o estoque de trabalho

O “desempregado” representa trabalho estocado. Imagine uma empresa como a General Motors, que vende carros. Se não há muita procura por carros, a GM estoca os carros no pátio. Este estoque tem um custo. Os carros precisam ser guardados, conservados, vigiados, transportados. O terreno tem impostos, recebeu infraestrutura, tem energia. Então a GM terá prejuízo guardando carros? Dificilmente, porque os custos são diluídos no cálculo do preço dos carros. Tudo é contabilizado. As empresas funcionam assim.

Pois o “desempregado” também é um estoque. Um estoque de serviço. Quando não há procura pelo serviço, ele tem que ficar estocado em casa, mas sem remuneração. Ele tem custo: precisa comer, se vestir, se educar, se divertir, criar filhos. Sem ter estes custos contabilizados, ele terá prejuízo. Você acha que uma empresa sobreviveria com esse prejuízo? Então por que o trabalhador tem que sobreviver assim? A resposta é evidente: é preciso contabilizar o custo do estoque de serviço.

Isto pode ser feito com uma simples lei, uma espécie de lei áurea para os empregados, a Abolição do Emprego:

  1. Pessoas físicas não podem ser contratados para nada nem por ninguém, seja por outras pessoas físicas ou por outras pessoas jurídicas.
  2. Apenas pessoas jurídicas podem fornecer serviços, na figura de seus proprietários e sócios.

O que isto provocaria? Bem, se uma empresa não pode contratar pessoas como se fossem escravizados pagos, ela só pode contar com o trabalho de seus sócios, que recebem pro labore. Por exemplo, se uma gráfica precisa de mão de obra, ela deve contratar serviços de uma outra empresa de fornecimento de serviços gráficos em que todos os trabalhadores da indústria gráfica sejam sócios. Ou seja, uma cooperativa de trabalho.

Mas a simples abolição da “nova escravatura” não resolve o caso. Aí entram os atuais sindicatos, que devem se organizar em cooperativas de serviço e associar todos os trabalhadores de uma região, assegurando que todas as pessoas, antes desempregadas, terão seus custos contabilizados e cobertos.

Organização empresarial

A cooperativa calcula as necessidades de todas as pessoas, faz sua planilha de custos e vai negociar com quem precisa de serviços. Eventualmente, haverá mais pessoas que serviços, mas a cooperativa decide o que essas pessoas farão. Dez por cento das pessoas estarão de férias. Outros podem se dedicar a diferentes atividades: trabalho voluntário, pesquisa de novos serviços, estudos. Sempre há coisas para fazer.

O principal ponto é este: as cooperativas se organizam como empresas, pois empresas quase sempre se dão bem. Empregados quase sempre se dão mal. Empresas têm administradores, têm técnicas, tem planejamento. Empresas têm tudo para dar certo.

Democracia empresarial

O fim do patronato corrige outra situação desagradável do mundo atual: a falta de democracia. Não estou falando daquela democracia que a gente leva 730 dias para exercer: a democracia civil, que conquistamos com muito custo, que não é a ideal, mas que é melhor que nada. Estou falando da falta de democracia empresarial. No patronato, as pessoas passam mais de oito horas por dia em um ambiente altamente autoritário, que é o ambiente empresarial, como chamou atenção o empresário progressista Ricardo Semler ainda antes da queda do muro de Berlin. Um quarto da vida submetidos  a uma hierarquia rígida, sem oportunidades de desenvolver suas próprias capacidades de discernimento, sem iniciativa.

Numa cooperativa, pelo contrário, o associado é quem decide, democraticamente. E o melhor: no final do ano divide os lucros! E as relações de uma cooperativa de serviços com uma empresa contratante de serviços são relações de parceiros no negócio, não de patrão, pois os dois lados sabem que ganharão.

Faturamento proporcional

Para os que fornecem serviço, a melhor tática não é brigar, como fazem patrões e empregados hoje, mas é fazer uma associação com o contratante de serviço, com remuneração relativa ao desempenho da empresa contratante. Isto quer dizer que, quando uma empresa estiver em situação ruim, a cooperativa de serviços receberá menos. Em compensação, se a empresa contratante de serviço se der bem, todo o mundo vai se dar bem. Isto incentivará todo o mundo a trabalhar.

Este sistema também vacina a economia contra crises. Numa crise clássica do capitalismo (na verdade, crise do patronato), a coisa é assim:

  1. Quando as empresas começam a ser dar mal, demitem.
  2. Sem trabalho, as pessoas param de criar riquezas, pois é o trabalho que gera riquezas.
  3. Sem dinheiro, param de consumir.
  4. A economia entra num redemoinho realimentado que engole tudo.

No sistema sem emprego, quando a economia não está bem, ninguém para de trabalhar. Como não há emprego, não há desemprego. As pessoas continuam trabalhando, portanto a riqueza não para de ser gerada. As pessoas podem ganhar menos, mas não ficam “desempregadas”. Com a economia funcionando, fica mais fácil atravessar períodos não muito bons sem o desespero de ficar sem trabalho.

Toda esta jogada pode ser feita sem grandes traumas, apenas seguindo as técnicas de administração modernas. Sem derrubar o capitalismo, sem mortes, sem paredões. Apenas democratizando o capitalismo. Afinal, a culpa pela miséria não é do capitalismo (a destruição do ambiente, sim), mas do patronato, o sistema patrão-empregado que substituiu a escravatura.

Já que escravatura não foi abolida, foi apenas substituída, está na hora de fazermos a abolição do emprego.

About José Antonio Meira da Rocha

Jornalista, professor das áreas de Editoração e de Mídias Digitais na Universidade Federal de Santa Maria, campus cidade de Frederico Westphalen, Rio Grande do Sul, Brasil. Doutor em Design pelo Programa de Pós-Graduação em Design (PGDesign)/Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, Brasil, 2023. Mestre em Mídias pela UNISINOS, São Leopoldo, RS, Brasil, 2003. Especialista em Informática na Educação, Unisinos, 1976.